Uma equipa de investigação da Universidade de Coimbra (UC) descobriu que o relógio biológico interno está profundamente afetado nas pessoas com a doença de Machado-Joseph – uma condição neurodegenerativa rara e hereditária, que afeta a coordenação dos movimentos, o equilíbrio, a fala, a deglutição e outras funções essenciais, e que tem uma prevalência particularmente elevada nos Açores.
Neste estudo, os cientistas de Coimbra demonstram, pela primeira vez, que nesta doença ocorrem alterações dos ritmos circadianos – os ciclos biológicos naturais de aproximadamente 24 horas, que regulam o funcionamento do corpo, incluindo o sono, a temperatura corporal e a atividade física. Os resultados deste estudo inovador estão agora publicados na prestigiada revista científica BRAIN.
“O que descobrimos foi que o ritmo circadiano vai perdendo a sua robustez à medida que a doença avança. Percebemos ainda que a proteína alterada nas pessoas com esta doença – a ataxina-3 – interfere com os sinais que o cérebro envia para manter o corpo a funcionar de forma sincronizada. É como se o relógio interno deixasse de dar as horas certas”, explica o primeiro autor do estudo, investigador do Centro de Neurociências e Biologia Celular da UC (CNC-UC) e do Centro de Inovação em Biomedicina e Biotecnologia (CiBB) e estudante de doutoramento da Faculdade de Farmácia da UC (FFUC), Rodrigo Ribeiro.
A equipa de investigação estudou os ritmos circadianos e caracterizou as suas perturbações, descobrindo níveis de atividade reduzidos e mais fragmentados, dificuldade na sincronização a variações repentinas no esquema de luz, e disfunções nos ritmos da temperatura corporal interna. Estes dados revelam que quem vive com esta doença apresenta menos regularidade nos horários de sono e vigília, tem maior dificuldade em adaptar-se a mudanças no ambiente (como o jet lag) e regista alterações invulgares na temperatura corporal.
Para estudar estes ritmos, a equipa de cientistas acompanhou pessoas diagnosticadas com a doença de Machado-Joseph, usando pulseiras de monitorização (os actígrafos), que registam momentos de sono e atividade. Através desta monitorização, foram identificadas alterações severas nos parâmetros do ritmo circadiano correlacionadas com a progressão clínica da doença. As pessoas com a doença de Machado-Joseph apresentam, por exemplo, menor robustez e estabilidade do ritmo circadiano, maior quebra nos padrões de atividade-repouso, bem como diminuição da eficiência e do tempo total de sono.
Paralelamente, foram utilizados modelos animais e celulares para estudar como a doença afeta o funcionamento do cérebro ao longo do dia.
O estudo revela ainda que a proteína ataxina-3 ajuda a ativar genes que regulam o ritmo circadiano. No entanto, na sua versão alterada – a ataxina-3 mutada, característica da doença de Machado-Joseph – essa capacidade deixa de funcionar corretamente. Esta informação ajuda a explicar por que razão os ritmos circadianos se desorganizam à medida que a doença avança.
“Compreender a disfunção do relógio biológico é crucial não só para aprofundar o conhecimento da fisiopatologia da doença, mas também para estabelecer bases para a identificação de biomarcadores que permitam monitorizar a sua progressão”, acrescenta o cocoordenador deste projeto científico, presidente do CNC-UC, coordenador do CiBB e docente da FFUC, Luís Pereira de Almeida.
Neste contexto, a equipa da Universidade de Coimbra espera que, num futuro próximo, os dados revelados por esta investigação possam contribuir para, por exemplo, “testar intervenções baseadas no ritmo circadiano para combater esta doença devastadora e estabelecer parâmetros de actigrafia – um método não invasivo para monitorizar com precisão a atividade e a temperatura corporal – que permitam uma avaliação personalizada da sua evolução”, partilha a coordenadora deste trabalho, investigadora do CNC-UC e do CiBB e docente da FFUC, Cláudia Cavadas.
A doença de Machado-Joseph, também conhecida como ataxia espinocerebelar tipo 3, continua a não ter cura. Assim, este trabalho é um passo importante para compreender melhor a doença e encontrar novas estratégias que possam melhorar a vida de quem lida com ela.
Este trabalho foi desenvolvido por uma equipa multidisciplinar da Universidade de Coimbra, que envolveu cientistas de várias unidades de investigação e ensino – CNC-UC, CiBB, GeneT, Faculdade de Farmácia, Faculdade de Ciências e Tecnologia e Faculdade de Medicina –, tendo contado ainda com o envolvimento da Unidade Local de Saúde de Coimbra.

O artigo científico Circadian Rhythms are Disrupted in Patients and Preclinical Models of Machado-Joseph Disease está disponível em http://academic.oup.com/brain/article-lookup/doi/10.1093/brain/awaf199.ixa de entrada