A Revolta do Milho, um episódio de resistência popular ao Estado Novo que levou à prisão de 14 pessoas em Peniche, em 1942, é recordado numa recriação histórica no sábado, na localidade de Vale da Pedra, no concelho de Leiria.
No lugar de Estremadouro, em Vale da Pedra, localizada na União das Freguesias do Souto da Carpalhosa e Ortigosa, em maio de 1942 um grupo de pessoas dali, da Bajouca e de Monte Redondo opôs-se à entrega de mil quilos de milho, imposta pelo racionamento relacionado com a II Guerra Mundial.
Em consequência, 36 pessoas foram presas, 14 das quais acabaram condenadas pelo crime de sedição, passando um ano na cadeia do Forte de Peniche.
Entre esses 14, estavam Maria de Jesus e Teresa Marques, “as únicas mulheres detidas na Prisão de Peniche, uma prisão masculina”, recordou o município de Leiria, a propósito da estreia da recriação histórica “A revolta do milho”, que celebra 80 anos passados sobre a libertação, em 29 de junho de 1943, dos envolvidos na sublevação.
A peça está a ser preparada há vários meses, com produção do grupo “O gato”, e participação de elementos das estruturas Manipulartes, CaosArte e Teatro de Animação de Santa Eufémia, além de 16 habitantes locais, alguns dos quais familiares de revoltosos.
É o caso de Maria Emília Duarte, neta de Maria do Outeirinho, uma das mulheres que lideraram a insurreição, mas nunca detida, porque conseguiu fugir.
“Quando soube, achei interessante e quis saber mais sobre a minha avó”, que “sofreu muito, porque era mãe solteira, e deixou para trás o meu pai, que tinha 13 anos”, contou à agência Lusa, no final de mais um ensaio.
Maria Emília, que faz de escrivã e de figurante na recriação, lançou-se numa investigação que a levou até à Torre do Tombo, onde teve acesso ao processo da Revolta do Milho. O documento esclareceu dúvidas entre a comunidade e ajudou Fernando José Rodrigues na criação da dramaturgia.
“Esta é uma história dorida, dramática e que, sobretudo, nos faz repensar como eram os tempos naquela altura”, contou o dramaturgo e encenador.
Em “A revolta do milho”, destaca-se “o papel fundamental das mulheres”, recordando as presas em Peniche.
“Elas sentiam uma grande diferença para o que era estar aqui [em Vale da Pedra], com as galinhas e tudo o resto. No Forte de Peniche, uma prisão só de homens, tinham a agressão das águas a bater no ‘forte das gaivotas’, como lhe chamavam. Era a loucura das águas, como se diz a determinada altura na peça”, antecipou Fernando José Rodrigues.
Para a recriação histórica foi fundamental José Teotónio. Por “dever de memória”, foi dele a ideia de fazer uma peça de teatro sobre a Revolta do Milho.
“Pensei: o que posso fazer para que isto perdure na memória das pessoas?”. Lembrou-se do teatro, “com participação popular”. E ele, David Ferreira e Marco Domingues apresentaram uma proposta que venceu o orçamento participativo de Leiria e que financia a produção.
O objetivo principal “já foi conseguido, felizmente”: a história, “que deixou marcas profundas”, foi “sendo ocultada, escondida, contada em surdina na família” durante décadas. Mas agora é tema de conversa todos os dias.
José Teotónio espera que “daqui a 20 anos se fale nos 100 anos. E que daqui a 70 anos se fale nos 150 [da Revolta do Molho]. É essa a semente que eu e todos os outros queremos deixar”.
“A revolta do milho” é apresentada no sábado, a partir das 21:30, no largo da Igreja de Vale da Pedra.
Para José Teotónio, há ainda outro motivo para elevar o exemplo de coragem das gentes da terra.
“Aquilo que se passou em Abril de 1974, teve a génese em muitos movimentos destes que se passaram no país. Foram muitos movimentos populares de resistência e de confronto com autoridades brutais que fizeram com que o 25 de Abril pudesse acontecer. É importante celebrar estes pequenos momentos, que depois permitiram a vitória da democracia sobre um regime autoritário”.